Como defender o relativismo cultural frente às práticas de inferioridade da mulher, do sistema de castas indiano ou do infanticídio indígena?
Na minha viagem lenta à Ásia, quando fiz a conexão em Riyad na Arábia Saudita, presenciei de uma forma mais abrangente alguns aspectos mais marcantes na religião islâmica, principalmente tratando-se da submissão da mulher ao homem.
Na Turquia, a prática (ainda) é desestimulada e os poucos casos passam despercebidos. Na Arábia Saudita não. As cenas de mulheres totalmente cobertas de preto com apenas a faixa dos olhos visível e andando sempre atrás de seus maridos impressiona. Não é um ambiente agradável. Transcende submissão, mesmo quando o costume é consentido pela mulher.
Uma vez que recebem esses ensinamentos desde cedo, é difícil exercer, tanto psicologicamente quanto fisicamente, seu livre-arbítrio nessa situação, pois em função da educação em condições sociais particulares, submete-se cegamente aos valores absorvidos, perdendo a consciência do absurdo da situação.
Acredito que esse meu mal estar já foi inconscientemente pressentido, fazendo com que eu evitasse a visita aos países islâmicos, tanto pela rigidez de alguns aspectos religiosos quanto pela situação política que em geral, não permite a livre liberdade de expressão. Essa última, um tema para outro post.
Direitos sim, privilégios não
Essa situação não se encerra na religião islâmica, pois há religiões pentecostais que também colocam a mulher em uma situação inferior, assim como na Índia, onde a situação é ainda potencializada pelo sistema de castas, diferenciando as pessoas desde o nascimento. Circunstâncias ainda presentes hoje, cultivando obscuramente o pesadelo da distopia de Aldous Huxley, Admirável Mundo Novo, cuja resenha nesse blog está aqui.
Dizem que religião não se discute, assim como política (deixo de lado o futebol pois é um tipo de discussão que não acrescenta nada a ninguém), mas acredito que o ponto da igualdade de gênero deve ser sim, posto na mesa. Seus direitos e deveres deveriam estar acima de qualquer preceito religioso, assim como sua liberdade de exercer suas próprias opiniões.
Para quem não sabe, na Arábia Saudita as mulheres obtiveram autorização para votar somente em 2015, e somente em 2018 conquistaram o direito de dirigir, embora dentro das próprias famílias existam pessoas que ainda são contra as novas leis. haja ainda muitas proibições em vigor.
Gostaria de fugir à obviedade que considero esse ponto, mas quando centenas e centenas de milhões de pessoas vivem nessa alienação, aceitando serem diferenciadas pelos seus gêneros e permitindo que terceiros as impeçam de exercer sua liberdade de expressão livremente, eu vejo que nada é tão óbvio quanto parece.
As diferenças de gênero são apenas biológicas e não podem de forma nenhuma ser usadas para definir atribuições e condições, muito menos direitos e deveres.
Entretanto, existe uma atual tendência a confundir direitos e privilégios. Direitos universais, como à vida, à propriedade, à liberdade (ausência de coerção, pelo conceito de liberdade negativa de Isaiah Berlin) e à busca da felicidade (não infringindo os direitos de outro indivíduo) são os que defendo. Porém, referendar privilégios ilegítimos a um grupo com violação dos direitos de outro grupo é uma tendência atual, que não compactuo.
Enfim, os direitos humanos universais deveriam, sim, existir a todos. Algo que algumas religiões não permitem e deveriam ter sim, alguns de seus preceitos rediscutidos.
Para uma melhor compreensão dos direitos naturais e suas diferenças em relação aos privilégios, leia “Liberdade e Poder: os direitos de John Locke revisitados“.
A modinha do relativismo cultural sem avaliação da moral
Isso contraria, como alguns escritos de Karl Popper em seus últimos trabalhos, a tese das pessoas partidárias do relativismo cultural puro, isso é, a defesa de que não podemos julgar sociedades com base no nosso padrão cultural e que devemos possuir uma flexibilização para analisar as atitudes individuais, que possuem origem no meio em que vivem.
Essas ideias vêm de longe, desde os filósofos pré-socráticos de Atenas, os sofistas, que afirmaram que não existiam normas absolutas para o certo e o errado. Anunciando que “o homem é a medida de todas as coisas”, imaginam que os pensamentos e desejos de cada pessoa faz com que não exista uma verdade absoluta. Essas ideias estão intimamente ligadas e podem ser vistas no artigo “O certo e o errado”, do Instituto Liberal.
Desenvolvendo mais o tema, chegaremos inevitavelmente à exposição das hipocrisias dos discursos atuais que estampam as máximas ideológicas expostas diariamente nos jornais. Vozes fortes ao defender os direitos das “minorias”, por exemplo. Normalmente, expostas por pessoas que sempre estão a favor de países muçulmanos e ditatoriais como o Irã. Ou mesmo ao lado dos muçulmanos europeus, que inferiorizam as mulheres e abominam o homossexualismo.
Estando o direito do ser humano intacto, independente do gênero e suas opiniões sexuais, até é possível aceitar certa relativização em alguns aspectos, porém apenas em situações que não envolvam dimensões morais. Em algumas sociedades da Ásia, o rigor no estudo e respeito à família, por exemplo, é levado ao extremo. Mas é algo geral a todos.
O desconforto maior, entretanto, é entrever onde é o ponto desse limiar de tolerância. O fato é que ele deve existir. Aqueles que defendem a inexistência de limites, o que têm a dizer das declarações de gurus indianos que culpam as mulheres por sofrerem estupro coletivo seguido de morte, na Índia?
No Brasil, até quando vamos tolerar os infanticídios em algumas comunidades indígenas? Quantos exemplos de tolerância cultural temos no mundo? Morte por apedrejamento como uma condenação legal por infidelidade é algo natural?
Luiz Felipe Pondé escreveu um artigo a respeito, comentando dos sacrifícios brutais realizados pelos povos pré-colombianos. Afinal, será que não é uma grande oportunidade de rediscutir os limites do relativismo cultural em prol do que chamamos de civilização?
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Excelente post André.
Meus parabéns.
Abraço!
Muito obrigado, Danilo!
Abraço e bom final de semana!
Há dificuldade de lidar com algo do outro lado do mundo, por isso acho válido lidar com essa situação próxima a nós. Os muçulmanos vivem no Brasil sem chamar muita atenção. A submissão da mulher existe aqui, só não entendo o que pode ser feito se não houver exposição pública disso. Será que se resume a vestimenta da mulher?
Olá John, não sei se entendi seus pontos…
“Lidar” com a situação envolve apontar proposições corretas, dentre várias que comentei no texto, mas não envolve criar novos direitos que não deveriam existir.
Quais pontos especificamente do texto você comenta?
Eu quis dizer que o limite desse relativismo depende mais de onde ele é realizado, por questões práticas e diplomáticas, pelo menos em relação ao islamismo. Aqui eles são bem discretos, dificilmente veremos uma mulher ser apedrejada na rua, por exemplo.
Agora essa pauta socialista das minorias, só serve pra gerar baderna.
Muito bem escrito, e realmente nos leva a refletir sobre tudo isso…
🙂
Ola André. Adorei seu texto. Você escreve maravilhosamente bem. Eu gostaria só de adicionar uma ideia na questão. Todas, sim, todas as situações descritas acima podem ser relativizadas. Calma, não me julgue, deixe me elucidar. É que o conceito de relavização não excluí a crítica. Eu estive em uma palestra referente a esse tema. As vezes as pessoas acreditam que relavizar algo é concordar ou retirar a culpa, minimizar horrores imperdoáveis que agridem os direitos basicos humanos. Longe disso, relavizar é entender uma situação sobre a ótica da cultura alvo, mas esse processo não diz que você deve concordad e… Leia mais »
Obrigado Gessner!
Ok, entendi o que quis dizer. Mas o "entender" algo sob a ótica cultural, não é uma forma, também, de aceitar (ou ainda se quiser, "concordar", "retirar a culpa), ou ainda, "relativizar" assassinatos sob a doutrina do multiculturalismo? Será que não é somente um jogo de palavras?
O que vc disse pode ser correto, mas não retira os argumentos de quem defende tais práticas. Esse é o meu ponto.
Abraços!