Uma reflexão pessoal sobre direitos naturais, propriedade privada, liberdade e poder individual e privilégios, à luz das ideias de John Locke, Thomas Jefferson e Isaiah Berlin.
O objetivo desse artigo é estabelecer algumas considerações referentes ao conceito dos direitos naturais e poder, baseado nas concepções de John Locke, filósofo empirista inglês precursor das ideias iluministas francesas e Thomas Jefferson, o mentor da redação da Declaração de Independência dos EUA.
Tais pensamentos são próprios e individuais, ou seja, estão fora do mainstream que normalmente acessamos sobre o assunto. No texto procuro expor uma condensação, sem partir para o reducionismo, dos direitos naturais propostos por ambos e exercitar um conceito diferente para a liberdade que comumente conhecemos: a liberdade não é um direito natural em si, mas sim a viabilidade de exercer esse direito.
Em um segundo momento, avalio que esse conceito de liberdade não pressupõe a existência do conceito de capacidade, ou seja, liberdade não é poder, envolvendo, assim, os conceitos de liberdade positiva e liberdade negativa, propostos por Isaiah Berlin no século passado.
Propriedade privada ou procura da felicidade?
John Locke, em seu Segundo Tratado do Governo Civil, estabeleceu como direitos naturais a vida, a liberdade e a propriedade. Thomas Jefferson, na Declaração de Independência dos EUA substituiu a palavra “propriedade” pela ambígua “procura da felicidade”. A diferença de acepção envolve objetivos e interesses diferentes de cada autor, permeados pela situação histórica em que viviam.
Locke vivia em pleno absolutismo inglês e concebia a justificação do Estado para proteger os direitos naturais – particularmente a propriedade privada, dos cidadãos e legitimava a destituição do governante caso esses direitos não fossem corretamente supridos pelo governo.
Jefferson escreveu a declaração de independência quase 100 anos depois, em um ambiente onde a escravidão possuía bases legais e o conceito de propriedade privada encerrava assim, conotações políticas. Eu prefiro a concepção de Locke, uma vez que o termo “propriedade”, além de possuir um alcance mais abrangente, viabiliza uma análise sob uma perspectiva racional.
A expressão “procura da felicidade”, redigida por Jefferson, envolve aspirações particulares que dependem de nossa percepção da realidade, ou seja, do efeito que determinadas características mundanas e temporais exercem sobre nossa consciência. Como encerra a dependência de um juízo individual, não permite assim, a construção de algumas considerações sobre a natureza dessa propriedade pessoal, privada, de cada indivíduo.
O que é, de fato, propriedade privada?
Um dos males do pensamento estatista atual é atribuir uma conotação negativa ao direito à “propriedade privada”. Sua posse, normalmente exemplificada pelo usufruto de meios de produção como fábricas e latifúndios do agronegócio (que são essenciais para a economia de um país, alimentando uma enorme cadeia produtiva), é muitas vezes relacionada, falsamente, aos males do nosso subdesenvolvimento.
Mas o leitor deve concordar que a propriedade privada também compreende os imóveis populares que são, com muito custo, objetos de conquistas para muitas das famílias mais carentes. Engloba veículos de transporte, desde um helicóptero até uma bicicleta. É o gadget que você está usando nesse momento para ler esse artigo. São os frutos do trabalho de quem se despede e os deixa como herança aos seus descendentes. São seus pertences de valor sentimental que um dia você recebeu de presente das pessoas que tanto estima.
É, enfim, tudo a que você atribui um valor e tenha conquistado por direito. É algo legítimo a todo indivíduo pelo seu direito às próprias conquistas individuais. E assim como Locke sugeriu, o Estado teria, em tese, uma função primordial de proteger esse direito natural à propriedade privada.
Liberdade é algo essencial para nossos direitos. Mas ela não é um direito natural
Além de bens físicos, podemos pensar também como propriedade privada, as nossas ideias e opiniões. O que pensamos é algo essencialmente nosso. As linhas desse texto, por exemplo, provieram dos meus pensamentos, dos meus princípios e são de meu domínio. A propriedade, além de ser o fruto do trabalho, é também o produto do conhecimento que adquirimos durante a vida.
Temos assim, uma propriedade intelectual – também manifestada em relação às patentes, cujos direitos em geral, devem ser reconhecidos. Aspirações, instintos e julgamentos também fazem parte dessa concepção ampliada de propriedade privada.
Admitindo esse conceito expandido da propriedade individual, acrescento outro que permitirá avançarmos posteriormente para a conclusão da primeira argumentação.
Embora os teóricos incluam a liberdade como um dos direitos naturais, eu prefiro a definição na qual a liberdade pode e deve ser entendida como o meio que possibilita o pleno exercício de seus direitos, sem que algo ou alguém refreie sua iniciativa de ação. Se considerarmos assim que a propriedade privada abarca, além de objetos físicos, os nossos pensamentos, desejos e ações, a liberdade não seria um direito em si, mas sim a livre prática desses direitos.
O que é bem diferente.
Direitos confundem-se com a liberdade de manejarmos nossas propriedades privadas
Locke manifestou o direito que possuímos à vida. Ora, mas nossa vida está em nosso domínio pessoal, ou seja, é nossa propriedade privada. O direito de porte livre de armas para legítima defesa de nossa vida, envolve outro conceito de propriedade privada. O conhecimento que adquirimos para manejá-la foi uma conquista pessoal, e incorpora-se também à nossa propriedade intelectual.
Deste modo, o direito à vida é, na verdade, eclipsada pelo próprio direito à propriedade privada. O primeiro termina por ser uma decorrência do segundo.
Para ler os argumentos principais dos motivos de eu defender a liberdade do porte de armas, veja o artigo: “Legalização do porte de armas e desarmamento: 3 argumentos essenciais”.
Jefferson, por seu lado, incluiu como um direito, a busca da felicidade. Esta é composta de atitudes (também ações individuais), provindas de desejos e conhecimentos próprios que se alteram por decisões internas, durante nossa existência.
Mas nossos desejos e conhecimentos também são nossas propriedades privadas. O seu direito de atuar em prol à sua felicidade é nada mais, nada menos, do que a licença de possuir o direito necessário para praticar o que já é seu. Novamente, a procura da felicidade é uma decorrência da livre prática de sua propriedade.
Primeira conclusão: liberdade não é direito natural
Nesse sentido sintetizo que o direito natural é nada mais, nada menos, do que a possibilidade de exercer, manejar e decidir ações relativas às suas propriedades privadas. E a liberdade não é uma das expressões dos direitos naturais, mas sim a condição para que tais direitos sejam naturalmente manifestados.
É interessante ainda como podemos ainda derivar a função primordial do Estado nesse ponto: além de proteger nossos direitos à propriedade privada, ele também tem o dever de respeitar a propriedade de nossos direitos, como sua livre manifestação, como a liberdade de expressão, que é, ao final das contas, a possibilidade de expor (liberdade) uma propriedade particular (nossas opiniões). Tanto nossas ideias quanto suas expressões, devem ser garantidas.
Esses pensamentos, entretanto, possuem duas considerações consequentes:
- As ações exercidas com base nos meus direitos de propriedade não serão legítimas se interferirem nos direitos de propriedade de outro indivíduo.
- Possuir liberdade para esse exercício não significa ter capacidade para tal, ou seja, liberdade não é poder.
São os assuntos que veremos a seguir.
Direitos pertencem a todos. Caso contrário, não são direitos, e sim privilégios
É um ponto de vista corrente a ideia de que nossos direitos terminam onde começam os direitos dos outros. Tal perspectiva encontra suporte em ampla parcela da população. Porém, em geral, as noções que permeiam essa tese no pensamento coletivo, embora corretas, são rasas.
Uma vez que o conceito de direitos naturais não é bem assimilado em uma sociedade coletivista como a nossa, as pessoas tendem a concordar com essa consideração apenas de forma superficial. Não há aprofundamento desse conceito além do senso comum.
Os direitos naturais de propriedade são estabelecidos a partir de uma condição humana desde o nascimento. São direitos universais, ou seja, eles valem para todos ao mesmo tempo e na mesma intensidade, e sua existência não depende da criação e revogação de leis.
A partir dessa definição, aproximamo-nos da próxima reflexão: uma pessoa que possua tais direitos precisa aceitar que todos os possuam da mesma forma. Negar esse entendimento fará com que adentremos em um conceito que é muitas vezes confundido com o direito: o privilégio.
Significado de privilégio: MEU direito e SEU dever
Desfrutar um privilégio implica deveres de outras pessoas, o que não ocorre com o direito natural. É nesse sentido que “nossos direitos terminam onde começam os direitos dos outros”, pois a partir do momento em que você exige (excluindo, logicamente, contratos preestabelecidos entre as partes) um dever de alguém, seja com seu consentimento ou não, você possui um privilégio, não um direito natural.
Podemos expor exemplos fortes para sedimentar esse conceito. Imagine duas nobres situações: a amamentação pela mãe ao recém-nascido ou a aplicação de aulas como voluntário em cursinhos populares ou entidades infantis. São atividades honrosas, mas não atestam direitos naturais dos beneficiados.
O recém-nascido tem um privilégio de ser amamentado e os alunos, de possuir um voluntário para lhes ensinar. Não existe algo como um direito natural à amamentação e à educação. Esses exemplos mostram, contudo, que a existência de um contrato de mútuo acordo pode abranger muitas atitudes morais, com atividades dignas de serem reverenciadas e encorajadas.
A falha ética surge quando ocorrem ações sem consenso. O maior exemplo é a pilhagem, através dos impostos, do dinheiro da sociedade a fim de garantir pretensos direitos aos mais carentes. Muitas alegações sustentam que o Estado é inerentemente ineficiente, e os recursos que muitos acreditam necessários para ascendermos a uma sociedade mais justa, ficam retidos nas mãos de poucos.
Isso é correto, mas o argumento moral não é esse, mas sim que tal arranjo reflete um privilégio. Não há direitos naturais ou direitos adquiridos aqui, uma vez que exigem deveres alheios.
Os exemplos na confusão do conceito de direitos e privilégios são inúmeros. Quando falamos, por exemplo, de direitos diferenciados dos funcionários públicos, direito de greve, direito à renda mínima ou direitos de cotas, abordamos de direitos ou privilégios? Veja que a discussão não é SE algo deve ou não existir, mas SE tal situação configura um direito ou um privilégio.
Liberdade positiva e negativa, por Isaiah Berlin
A última consideração oriunda do conceito de liberdade como condição para a execução dos direitos, é a de que liberdade não é poder. Uma pessoa que não tem capacidade ou possibilidade de realizar algo não é menos livre por isso. O conceito de liberdade positiva, onde precisamos ter as premissas para exercer nosso próprio destino e consequentemente nossa liberdade leva, entretanto, muitos a possuírem uma percepção inversa.
O filósofo Isaiah Berlin, cuja morte completou 20 anos em novembro de 2017, definiu o conceito de liberdade positiva na década de 50 do século passado*. Existem duas formas de analisar essa ideia. A forma válida é dispor a liberdade positiva como necessária para o exercício do livre-arbítrio de uma pessoa. Para tal, teóricos invocam que a pessoa deve possuir os requisitos para tal ação.
Quando esses requisitos dizem respeito a estruturas sociais e suas inibições (cultura discriminatória, por exemplo), o conceito se encerra de forma clara e correta. Porém, quando essas condições são entendidas como as capacidades intrínsecas do indivíduo, elas entram em conflito com o conceito de liberdade negativa.
Definida como a ausência de interferências externas para o exercício de suas atividades, a liberdade negativa é o conceito mais puro de liberdade. Você é livre para tomar suas decisões, mesmo que você não tenha capacidade para isso, ou seja, você é livre para administrar sua vida da forma que deseja.
De certa forma, a liberdade negativa abrange os requisitos relativos à cultura discriminatória dispostos no conceito de liberdade positiva. Se você não os possui, existe uma coerção oculta e dissimulada para impedir o seu livre arbítrio.
Embora haja essa aproximação em um primeiro momento, ambas definições de liberdade entram em conflito em virtude da confusão em vincular o exercício da liberdade à capacidade e à necessidades materiais.
Não é à toa que a noção de liberdade positiva tem sido associada a ideologias que advogam que todos devem ter acesso a bens e serviços para poder ser qualificado como um indivíduo livre. Porém, isso conflita com a liberdade negativa como comentei anteriormente, tornando-se exercício de um privilégio ao invés de um direito.
Segunda conclusão: a perigosa solução estatal
Nesse sentido, supondo que o exercício da liberdade pressupõe a necessidade, por exemplo, de uma renda, de forma que seja possível a execução de certas aspirações, depreende-se também que alguém deve financiar essa renda. Ou seja, há uma incompatibilidade nas duas concepções de liberdade: positiva e negativa.
Prosseguindo nessa ideia, a liberdade positiva deve ser entendida como uma livre escolha do indivíduo de vender, por exemplo, sua força de trabalho para receber o seu salário e a liberdade negativa como a ausência de forças (inclusive discriminatórias) que inibam sua ação. Porém, caso ele não encontre uma forma de renda em função de sua capacidade, isso não resulta em falta de liberdade ou um atentado ao seu direito natural. Inverter esse fundamento tornará um suposto direito, um privilégio.
A ideia da liberdade positiva pode ser facilmente comprada quando acreditamos que precisamos fornecer de qualquer forma, a “capacidade” – e o conhecimento, necessários às pessoas para exercer sua liberdade.
Com raízes no coletivismo, essa concepção está arraigada entre os apologistas no bem viver, que ao invés de serem os agentes ativos da mudança que pregam ao mundo, exigem simplesmente deveres de muitos outros para a concretização de suas ideias.
Se você acredita que uma ditadura estatal é algo muito distante de nossa realidade, veja o artigo “Submissão ideológica e Yuri Bezmenov: o atalho ao Estado totalitário”
Superficialmente belo, esse conceito semeia as raízes da concentração do poder do Estado na sociedade, e é um passo perigoso no desenvolvimento de nossa sociedade. Mais Estado sempre significará menos liberdade com consequente intervenção em nossas propriedades privadas.
E, em uma história com final diferente da pregação de John Locke há quase 400 anos, ficaríamos órfãos de um guardião para proteção desse nosso direito natural, uma vez que nesse contexto, o Estado perderia sua total necessidade de existência.
* algumas fontes citam a Escola Psicanalista de Frankfurt como pioneira desses conceitos, dez anos antes das publicações de Berlin.
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Discordo totalmente da idéia que deveres implicam em privilégios para outrem. A liberdade deve ser acompanhada pela responsabilidade. Todos devem ser responsáveis pelos seus atos. No exemplo da amamentação, o bebê não seria privilegiado, pois ele não pediu para vir ao mundo, a decisão de nascer não foi dele. Quando você pega emprestado um dinheiro tem o dever de devolve-lo mais tarde, e quem emprestou não é um privilegiado. Se tu dirije, deve parar no sinal vermelho, para que exista o direito de passar no verde. Em relação aos direitos trabalhistas, eu penso que quem trabalha deve trabalhar para ter… Leia mais »
Paulo, acho que vc fez uma confusão. Você disse que discorda que “deveres implicam em privilégios para outrem”. Mas no texto está escrito que “desfrutar um privilégio implica deveres de outras pessoas”. Você inverteu aqui causa e consequência. Um dos exemplos que você usou mostra bem como a tese de que você discordou não faz mesmo sentido: devolver um dinheiro emprestado é um dever que não é um privilégio de outros (e sim um direito, já que ele o emprestou). Mas esse exemplo não invalida o que eu disse, justamente porque o emprestador não está desfrutando de um privilégio, e… Leia mais »
Paulo, de qualquer forma, inclui no parágrafo que surgiu a dúvida, um parênteses de que contratos preestabelecidos entre as partes não configuram um privilégio. Obrigado novamente por permitir-me a esclarecer isso melhor no texto.
Caros, esse post tinha mais de 50 comentários no Disqus, muitos com informações complementares e importantes. Mas na migração do Blogger para o WordPress, no final de outubro, todos se perderam. Não os acho nem nos fóruns da empresa.
Se alguém tiver conhecimento e poder ajudar, é só enviar um e-mail ao blog!
Obrigado!
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Muito interessantes suas considerações ! Aguardando a segunda parte !
Abraço !
Valeu Azul! Abraço!
parabéns.
Obrigado!
Eu entendo quase que o oposto: liberdade como objetivo é propriedade como meio
É um pensamento válido, colega. A liberdade deve ser sempre nosso objetivo e para isso, devemos procurar exercer nossos direitos de propriedade. Porém, só podemos exercê-los se tivermos, como um meio para tal realização, liberdade. É uma discussão que envolve possivelmente conceitos que estão tão amalgamados que causa e efeito podem confundir-se.
Obrigado pela consideração. Curta, mas profunda!
valoeu