Crítica da tese aristotélica da eternidade do mundo, por João Filopono de Alexandria


Um ensaio com os argumentos de João Filopono de Alexandria para refutar a teoria de Aristóteles sobre a eternidade do mundo.


Há algum tempo postei um ensaio filosófico referente ao opúsculo “Sobre a eternidade do mundo” de São Tomás de Aquino. Não é um assunto muito relacionado a esse blog, mas publiquei-o para auxiliar possíveis interessados no tema e entusiastas em críticas filosóficas.

Hoje disponibilizo uma pequena reflexão sobre as ideias de dois pensadores que viveram em uma distância temporal de 800 anos e refletiram sobre o mesmo tema. Infere-se pelo texto o quanto o pensamento de Aristóteles, o autor criticado, influenciou o mundo ocidental.

Suas ideias, apesar de confrontadas sob diversos argumentos, ainda permaneceriam sendo ensinadas por quase 1000 anos após João Filopono, o crítico, ter elaborado suas teses, tendo influenciado decisivamente São Tomás de Aquino em sua tese comentada no ensaio anteriormente mencionado.

Biblioteca de Alexandria - João de Filopono
A biblioteca de Alexandria, que João Filopono não conheceu

Lendo sobre o mundo físico defendido por Aristóteles, transparece-se inicialmente um pensamento ingênuo, mas que deve ser compreendido dentro de uma realidade única, totalmente diversa da condição atual, repleta com a posse de todo o conhecimento científico reunido de 2300 anos desde que Aristóteles escreveu suas teses.

As ideias aristotélicas permaneceram em evidência por um bom tempo em função da plenitude de seu sistema filosófico, que não encontrou substitutos até o Renascimento europeu, embora tenha recebido muitas críticas em aspectos particulares, como essa que apresento, por João de Filopono.

O vibrante ao ler e escrever sobre essas discussões é perceber o quanto o conhecimento que temos hoje é um conhecimento acumulado, presente na memória e no inconsciente de cada ser humano que o transmite às novas gerações. Se o leitor aprofundar-se na leitura de Filopono verá, por exemplo, que Copérnico, Galileu e mesmo Newton não foram tão originais assim, caso tenham tido contato com suas obras.

O que não retira os méritos de terem, a seu tempo, revolucionado a compreensão do mundo. Somos assim, de certa forma, herdeiros das ideias de outras pessoas, capazes de agregar novas descobertas e manter a raça humana hegemônica nesse planeta, apesar das críticas dos catastrofistas.

O texto é relativamente longo e, como no texto anterior de Aquino, não existe uma formatação adequada para que eu mantivesse as notas de rodapé para referência. De qualquer forma o texto original, com as notas de rodapé, está nesse link no Google Docs. Boa leitura!

Crítica da tese aristotélica da eternidade do mundo, por João Filopono

João Filopono de Alexandria (c. 490 – 570), filósofo neoplatônico cristão e comentador de Aristóteles, combateu os argumentos do filósofo grego a favor da eternidade do mundo em suas obras “Contra Aristóteles” e “Contra Proclum”.

Acreditava que a matéria teve um começo, sendo o maior advogado, em sua época, da doutrina da creatio ex nihilo, tornando-se o pioneiro de uma tradição filosófica criacionista cujos principais argumentos baseavam-se na ideia da impossibilidade de um regresso temporal infinito e na crítica ao argumento aristotélico da existência do quinto elemento celeste, superior, incorruptível e eterno.

Esse trabalho irá dedicar-se a essas duas críticas de João Filopono. Inicialmente, na relação à infinitude do mundo baseado no tempo e posteriormente, na existência e incorruptividade do quinto elemento celeste.

A infinitude do mundo

A eternidade do mundo foi proposta por Aristóteles sob um argumento que contém a afirmação da infinitude do tempo. O filósofo não defendia o infinito no espaço, aquilo que tudo engloba, mas sim o infinito como o que sempre sucede-se, interminavelmente. De fato, o filósofo diz em De Caelo:

“Nem se gerou o Céu inteiro, nem lhe é possível perecer, como alguns deles dizem, mas é um e eterno, não tendo princípio e fim de sua duração toda, mas contendo e compreendendo em si o tempo infinito”

Filopono de Alexandria, por sua vez, constrói argumentos que demonstram que é impossível atravessar o infinito e de que é impossível que algo seja maior que o infinito, seja por sucessão ou multiplicação. Além disso, argumenta a impossibilidade de um número infinito existir em atualidade, ou seja, é impossível atravessar o infinito e que é impossível um corpo finito conter um poder infinito. Esses argumentos são defendidos através de uma série de proposições.

A impossibilidade do infinito por sucessão pode ser explicitada em De Aertenitate Mundi contra Proclum, onde afirma que:

“Se o mundo fosse eterno (…) se supõe um número infinito de homens gerados (…) cada um deles terá sua existência num tempo finito, e todo o tempo terá de ser finito, uma vez que aquilo que consiste de finitos é finito. Se, no entanto, o mundo não for gerado e o tempo for infinito, segue-se necessariamente que os indivíduos gerados no infinito são, de fato, infinitos em número”

Desta maneira, João Filopono afirma que, quando tais novos indivíduos vierem a ser, serão adicionados aos infinitos indivíduos gerados no passado e o número infinito de indivíduos seria aumentado por sucessão, o que é um absurdo. Esse argumento pode ser aplicado também a toda espécie de movimentos, onde cada novo movimento adicionado aos movimentos acumulados aumentaria o infinito, fazendo o filósofo concluir que o mundo e o movimento não podem ser eternos.

Uma variante desse argumento, de que o infinito não pode ser aumentado por multiplicação, foi proposta por Filopono em contra Aristotelem, utilizando-se do exemplo do número das revoluções dos planetas. O filósofo afirmou que a cada movimento completo que um astro completa em torno da Terra, ele adiciona algo ao número total de revoluções que já ocorreram e estão acumuladas desde o início.

Mas como o número anterior dessas revoluções é infinito (pré-requisito de um mundo eterno), é impossível que o mundo seja eterno, visto que a multiplicação ou o aumento do infinito é impossível. Filopono usou da comparação com dois astros para se chegar à mesma conclusão do absurdo de multiplicar o infinito: uma vez que o sol dá 1 volta completa em torno da Terra, enquanto que Júpiter realiza 12 voltas, ambos corpos teriam um número de revoluções idênticos em torno da terra (um número infinito). 

Sobre a impossibilidade de atravessar o infinito, João Filopono, em seu comentário ao livro 3 da Física de Aristóteles, afirma que:

“…impossível que o tempo não tenha começado de alguma origem, nem é possível que o Universo seja, em algum sentido, eterno. Pois, se o Universo fosse eterno, é óbvio que o número de homens que vem a ser seria ilimitado, e ilimitado em atualidade (uma vez que, obviamente, todos vêm a ser em atualidade), tal que seria possível para um número ser ilimitado. E não apenas isso, mas o ilimitado seria atravessável em sua atualidade.”

Ou seja, Filopono argumenta que se o mundo fosse eterno, o número de homens a vir a ser atualidade é infinito, ou seja, é impossível um aumento do infinito, ou um número ilimitado, baseado nas próprias declarações de Aristóteles de que o ilimitado não pode ser atravessado, concluindo que o número não é ilimitado.

Aristóteles considerava o infinito potencial, com a possibilidade de aumentar indefinidamente, mas não um infinito como um todo apresentado. Diz o filósofo grego em Física III:

“Por conseguinte, trata-se de infinito em potência, não em ato (enérgeia), embora o que se tome sempre supere toda quantidade limitada. Mas este número não é separável [do processo da dicotomia], nem permanece sua infinidade, mas vem a ser, e assim também o tempo e o número do tempo. Quanto às grandezas, é ao contrário: divide-se, pois, o contínuo em infinitos, em direção ao maior, porém, não há infinito. Com efeito, quanto é admissível ser em potência, tanto é admissível ser em ato (enérgeia). Por conseguinte, visto que não há nenhuma grandeza sensível infinita, não é admissível ultrapassagem de toda grandeza limitada, pois nesse caso haveria algo maior que o céu. E o infinito não é o mesmo na grandeza, no movimento e no tempo, como se fosse certa natureza una, mas o posterior é dito segundo o anterior, como o movimento é dito infinito porque o é a grandeza pela qual algo é movido ou se altera ou aumenta, e o tempo é dito infinito por causa do movimento.”

João Filopono não aceita a tese do movimento e tempo infinito. Se subtrair-se, por exemplo, um tempo finito, o que sobra é finito ou infinito? Caso seja finito, então devolve-se o que foi subtraído e obtém-se somente uma quantidade finita, pois a adição de duas grandezas finitas não pode resultar em uma grandeza infinita. Porém, se o que sobra é infinito, devolve-se o que foi subtraído ter-se-á duas quantidades infinitas (o primeiro, original, menor do que o segundo, restaurado). Mas isso é absurdo. O tempo e o movimento não poderiam ser assim, infinitos.

Continuando sua argumentação, Filopono afirma que o tempo é quantitativo, e a existência de uma quantidade atualmente infinita de tempo é impossível. Se o tempo fosse infinito, seria necessário um número infinito de tempos anteriores que precederam o momento presente. Mas Filopono argumenta que o infinito não pode ser atravessado, percorrido, donde se conclui que se o tempo fosse infinito, jamais teríamos alcançado o momento presente, o que é absurdo.

Existência e incorruptibilidade do quinto elemento terrestre

As críticas cosmológicas de João Filopono à eternidade do mundo foram dirigidas principalmente no questionamento à teoria aristotélica da eternidade dos corpos celestes por não estarem sujeitos à contrariedade e foram expostas especialmente no De Aeternitate Mundi contra Aristotelem, que se inicia com um ataque direto à teoria aristotélica do éter tal qual estabelecida no De Caelo, I, 2.

A demonstração por Aristóteles da existência do éter, o elemento perfeito, isento de contrariedades e incorruptível, é fundamental para a sua conclusão da eternidade do mundo. Filopono, além de ter criticado a infinitude do tempo, criticou também a infinitude do elemento essencial para a tese aristotélica, tornando prescindível assim, a postulação de um quinto elemento, rompendo com a dicotomia céu e terra como regiões distintas e governadas por leis distintas.

Aristóteles afirmou que corpos simples o são por natureza e possuem em si um mesmo princípio e causa de movimento e repouso. A natureza de um corpo define o seu movimento, ou seja, que corpos com movimentos diferentes possuam diferentes naturezas. Para o filósofo, existem apenas dois movimentos naturais – o retilíneo (para cima, ou afastando-se do centro, e para baixo, em direção ao centro) e o circular (ao redor do centro) que são características dos corpos simples.

Corpos simples possuem um princípio de movimento natural, e assim seus movimentos são simples, retilíneos ou circulares. Corpos compostos, segundo Aristóteles, possuem o movimento preponderante do principal elemento que o constitui.

Para Aristóteles, no mundo sublunar, terrestre, existem apenas elementos que possuem naturalmente o movimento retilíneo, e seu sentido possui relação com seus lugares naturais: terra, cujo lugar natural é o centro do universo (da Terra) e assim move-se verticalmente para baixo, a água, que se move em linha reta para baixo, exceto na região central, o fogo, que ocupa o lugar natural mais externa da região terrestre e possui movimento vertical para cima, e o ar, em uma região intermediária entre a água e o fogo possui movimento retilíneo para cima, exceto na região do fogo, uma vez que os pesos e as levezas dos corpos são relativas um ao outro. Para os corpos celestes, Aristóteles afirmou que não possuem nem peso ou leveza, “pois se possuíssem pesos, mover-se-iam para o centro do Universo, e se fossem leves, mover-se-iam para cima”. 

Além disso, afirmou que “todo movimento é ou natural ou contrário à natureza e que o movimento que é contra-natural para um corpo é natural para o outro”. Se o movimento natural é definido como o movimento que é realizado pelos corpos aos seus respectivos lugares naturais, transitando da potência ao ato, o movimento não natural, ou violento, move os corpos contrariamente ao seu lugar natural, sendo necessária a aplicação de uma força exterior.

Para todos os movimentos, existe a necessidade de uma causa contínua e direta que, uma vez cessada, o movimento é interrompido. Para a ocorrência de um movimento é necessária uma mudança entre contrários, que ocorre sucessivamente em estágios, colocando a temporalidade como essencial ao movimento, não havendo assim, nenhum movimento sem tempo.

Através desses conceitos, Aristóteles inferiu que, se o movimento que é contra-natural para um corpo é natural para outro, e o movimento circular não é natural para nenhum dos corpos terrestres, deve existir um outro corpo primário que move-se circularmente, que denominou de éter.

A possibilidade de ser algum dos quatro corpos terrestres é descartada, pois um movimento circular contra a natureza seria o contrário de um movimento natural, e os contrários dos movimentos naturais dos corpos terrestres são necessariamente o lado oposto retilíneo de seu movimento natural. O fogo, por exemplo, possui um movimento contrário retilíneo para baixo e a terra, para cima. Sendo que algo só pode possuir um contrário, conclui a existência de um quinto elemento, simples, que tem seu movimento, circular.

Geometricamente, Aristóteles definiu o círculo como uma figura superior e perfeita comparada a uma reta, pois não possui um início, um fim ou a infinitude da mesma. O círculo ainda possui a propriedade de ser a a única figura limitada por uma só superfície e durante a sua rotação, ocupa sempre o mesmo lugar. Como o movimento circular, natural, é o único movimento que explica tal rotação, Aristóteles atribuiu ao movimento circular etéreo uma grandeza superior, uma vez que o círculo, movimento natural para tal elemento, é a figura mais conforme em sua natureza e substância.

As premissas, portanto, que concluem a existência do quinto elemento são:

  1. todo movimento é natural ou contrário (não natural) à natureza;
  2. o movimento que é contra-natural para um elemento é natural para um outro;
  3. algo simples possui um contrário simples;
  4. movimentos simples ocorrem em corpos simples e
  5. os movimentos simples são retilíneos (para cima e para baixo) e circulares.

Concluindo sua argumentação, Aristóteles escreve em De Caelo I, 2, 269a 31 – 269b 6: 

Ademais, se o movimento circular é o deslocamento natural para alguma coisa e percorre uma magnitude geometricamente simples, “está claro que há entre os corpos simples e primeiros algum que se move naturalmente em círculo, como faz o fogo para cima e a terra para baixo”.

Além disso, Aristóteles estava convencido de que esse quinto corpo, denominado de éter, ou a quintessência, que preeenche toda a região celeste, possui uma natureza superior aos demais corpos, uma vez que, como já citado anteriormente, o círculo é a figura perfeita. Assim, o movimento circular seria anterior ao retilíneo, e o corpo que o possui, anterior aos demais corpos, e consequentemente, deve ser de uma natureza superior quanto mais afastado está da região sublunar.

A base da natureza superior do éter é explicada, além da perfeição do círculo em relação ao segmento retilíneo, pela inexistência de contrariedade no movimento circular. Para tal afirmação, Aristóteles estabelece através de várias premissas que o movimento retilíneo não é contrário ao circular, pois movimentos contrários implicam em destinos contrários, passando por caminhos únicos e tais caminhos devem encerrar todo o percurso e não possuir um início e fim no mesmo ponto, algo impossível em um círculo mas facilmente factível em uma reta.

O éter, portanto, não possuindo contrário, não está sujeito à geração e à corrupção, uma vez que ambos os processos ocorrem a partir dos contrários, ou nos contrários, e não há nenhum movimento natural contrário ao movimento circular. Tal afirmação faz Aristóteles acrescentar o conceito da eternidade e inalterabilidade do mundo celeste em De Caelo II, 1, 283b 26-30:

Portanto, o Céu, na sua totalidade, nem foi gerado, nem pode perecer, como certos filósofos dizem, mas ele é um e eterno, não tendo princípio e fim de sua duração toda, mas, ao contrário, contendo e compreendendo em si mesmo o tempo infinito”.

Aristóteles ainda afirmou que além do Universo ser eterno, assim também são o movimento e o tempo, pois tudo o que foi gerado produz uma mudança anterior, fazendo com que um movimento preceda a geração de um móvel, que por sua vez seria precedido por outro móvel, ad infinitum.

No mesmo livro de Física VIII, 1, 252a 5-10, Aristóteles afirma que “se na verdade o tempo é o número do movimento – ou de um certo movimento-, necessariamente o movimento será eterno se o tempo for eterno”, que de fato, é eterno visto que é impossível que o tempo seja concebido sem o “agora”, um ponto que contém necessariamente o começo do tempo futuro e o fim do tempo anterior, e portanto, “necessariamente haverá sempre tempo” e o movimento.

A crítica de Filopono inicia-se quebrando a afirmação de que corpos de naturezas diferentes possuem movimentos diferentes. Um erro observado pelo filósofo nessa argumentação é de que, tanto para os pares “terra e água”, quanto ao par “ar e fogo”, os movimentos são os mesmos, ou verticalmente para baixo, ou verticalmente para cima, embora sua natureza fosse diferente. Se aceitasse que, como entendia Aristóteles, para cada par de elementos simples a natureza pela qual se movem é a mesma, como consequência deveríamos aceitar também que como consequência que “terra e água seriam da mesma espécie, o que <o gramático> diz ser evidentemente absurdo, uma vez que um é seco e o outro é úmido”. 

João Filopono assim, derruba a tese de que corpos com diferentes movimentos possuam diferentes naturezas, assim como o inverso, ou seja, corpos com diferentes naturezas possuam diferentes movimentos. Se se considerar então como verdadeira a afirmação de Aristóteles, que corpos que se movem com um e mesmo movimento deveriam ter a mesma natureza e a mesma espécie, teríamos então que reduzir o número de elementos de quatro para dois, o que, segundo Filopono, é evidentemente falso.

Não se sabe, pelo material que sobreviveu aos nossos dias, se Filopono foi um pouco além nesse debate, mas sua argumentação poderia ser complementada de forma mais incisiva uma vez que pela teoria aristotélica, em determinados momentos o elemento “ar” poderia mover-se para baixo, assim como a terra e a água, e o elemento “água” poderia mover-se para cima, assim como o ar e o fogo, tornando a ideia da relação entre a natureza dos corpos e seus movimentos ainda mais absurda.  

De fato, João Filopono, que reconhecia os movimentos retilíneos e circulares como movimentos simples, afirmou então que não é necessária uma diferente natureza para possuir um movimento diferente, ele nega a argumentação da existência do quinto elemento, o éter, e um dos pilares principais pela qual estava sustentada a concepção da teoria aristotélica do universo:

“Se <corpos> que são diferentes em natureza, como terra e água, podem mover-se com o mesmo movimento, <então> convertendo com a negação (sun antihesei antistrephôn), pode-se dizer, segundo ele que: não há nada que impeça que <corpos> que se movem com um diferente e não mesmo movimento de serem da mesma natureza, tal que, ainda que os céus movam-se em um círculo, e os <corpos> abaixo da lua em linha reta, não há nada que impeça dos céus serem da mesma natureza que os <corpos> sublunares e estejam sujeitos à corrupção como eles”

Além de afirmar que não era necessário postular a existência de um elemento que deveria possuir o movimento circular, Filopono argumentou que os corpos celestes não movem-se em um movimento circular perfeito, e nem que os mesmos ocorram ao redor do centro do universo. Baseado em diversos astrônomos gregos, disse o filósofo:

se as estrelas, que se movem com <seus> próprios movimentos pelas esferas, como sustentam os astrônomos – também giram ao redor de centros distintos de seus próprios que não coincidem com o centro do universo, então é evidente que nem as próprias estrelas (…) executam um movimento circular ou simples, já que ambos <os movimentos> para baixo ou para cima, são observados (…) as estrelas parecem claramente atingir um perigeu e um apogeu”

Filopono nega-se a aceitar ainda a natureza superior do movimento circular, tanto negando que o movimento circular é exclusivo aos corpos celestes como negando que o círculo é geometricamente perfeito em relação à reta. O filósofo considerava que a esfera do fogo e do ar, superiores em relação à superfície terrestre e mais próximas às esferas celestes, possuíam um movimento em sua totalidade, circular, assim como os céus.

O filósofo defende que a totalidade dessas esferas moviam-se circularmente, enquanto suas partes moviam-se verticalmente para cima, denotando um duplo movimento natural, rompendo com a tese aristotélica de que cada corpo simples possui apenas um movimento natural simples, mesmo reconhecendo que algumas partes dos elementos são rarefeitas e condensadas, uma vez que tais estados “são mudanças de qualidade, não movimentos espaciais”.

Como dito anteriormente, a tese aristotélica de que o círculo é geometricamente superior à reta é negada por Filopono, que afirma que não podemos aceitar a ideia de completude para definir o que é perfeito ou imperfeito. Se aceitarmos essa tese, um movimento eterno não seria perfeito, uma vez que seria ilimitado, sem começo e fim, ou seja, incompletos. Para o movimento dos céus ser perfeito, entretanto, ele não deveria ser eterno, mas sim possuir um começo, um meio e um fim. Tais afirmações, portanto, auxiliam a tese de que não existe argumento para que se acredite em uma prioridade do movimento circular ao retilíneo.

Enquanto Aristóteles definia os corpos celestes ausentes de peso ou leveza para justificar seu movimento circular, João Filopono não aceitava essas características intrínsecas aos corpos, o que impedia que um corpo pudesse ser leve em um lugar e pesado em outro. Mas isso era uma contradição de Aristóteles, pois ele mesmo dizia que corpos terrestres poderiam ser leves ou pesados dependendo do local em que estavam (a água era “leve” junto à terra e o ar era “pesado” junto ao fogo). Diz o filósofo, inferindo que leveza e gravidade (peso) não pertencem aos corpos enquanto tais:

Aristóteles disse (…) que o fogo é leve em todos os lugares, mas a água é pesada quando está em outros elementos e leve quando está na terra, e que o ar é leve na água e na terra, mas fora desses é pesado”

Assim, todos esses argumentos de Filopono (a negação da estrita ligação entre natureza e movimento dos corpos, que o movimento circular seja naturalmente exclusivo dos corpos celestes e com respeito à ausência de peso e leveza dos mesmos) levam ao filósofo acreditar que o mundo é naturalmente uniforme, sendo todos os corpos, sejam celestes ou terrestres são compostos dos mesmos elementos, não diferem em qualidade e faz com que o filósofo inicie a estruturação do argumento que mostra que tais corpos celestes também estão sujeitos à geração e à corrupção.

Como vimos anteriormente, Aristóteles defende que os corpos celestes não estão sujeitos à geração e à corrupção, em função da inexistência de contrários, uma vez que a geração e a corrupção têm existência a partir de contrários ou na presença de um subjacente. A inexistência de contrários foi estabelecida por Aristóteles em função da impossibilidade da contrariedade do movimento circular, já comentada.

Filopono divide inicialmente duas formas distintas de analisar o conceito de contrariedade: em sentido próprio, presente por exemplo nas qualidades, como quente e frio, seco e úmido, ou então em termos de forma e privação, como culto e inculto, homem e não homem. Uma vez que a imobilidade é a privação do movimento e possível nos céus (como Aristóteles definiu a privação do contrário), o filósofo arguiu que Aristóteles referia-se à contrariedade em sentido próprio.

Porém, se Aristóteles diz da contrariedade como sentido próprio, Aristóteles, segundo João Filopono, partiu de uma premissa falsa, pois não é verdade que todas as coisas são geradas a partir de um contrário em sentido próprio. Diz o filósofo:

“se não apenas os atributos, mas também as substâncias individuais são geradas, e se não há nada que seja contrário à substância, como o próprio Aristóteles ensinou nas categorias <3 b 24-32>, como <então> tudo é gerado de um contrário?”

Filopono utiliza as formas geométricas, como o círculo e o triângulo, para reforçar o argumento de que nem tudo é gerada a partir de um contrário, pois nenhuma forma é contrária à forma, como estava sustentado por Aristóteles. Ele vai além nesse tese, afirmando que a geração por contrários não é universalmente verdadeira nem mesmo para a categoria das qualidades, que sem dúvida, envolve contrários. Diz João Filopono:

“Esses não são necessariamente em todos os casos gerados de contrários. Se ar não possui nem cor e sabor (…) e se se transforma em água, que possui tanto cor quanto sabor, de que tipo de contrários de cor e sabor no ar a cor e o sabor vem a ser na água? (…) Mas mais do que isso, por putrefação do ar, seres vivos são gerados com várias cores e diferenças de sabor. De que tipo de contrários no ar (eles vêm a ser), se ar não possui <essas qualidades>?

Da mesma forma, Filopono afirmou que a escuridão não é o contrário da luz, mas sim sua provação, quando diz que:

Mas mesmo que alguém concordar que escuridão é contrária à luz, desse modo também a proposição aristotélica é (…) refutada. Pois quando fogo é gerado da fricção do ar que é iluminado durante o dia, é claro que ele é gerado <do ar> não como uma coisa iluminada, mas como ar. Por essa razão, ele também é gerado à noite. Então a luz que está no <fogo> gerado não foi gerada de um contrário”

Assim, considerando que Aristóteles diz da eternidade dos céus que eles não são gerados por ausência de contrariedade em sentido próprio, o argumento não é verdadeiro, pois parte de uma premissa, falsa, de que é gerado é gerado de um contrário. Por outro lado, se Aristóteles diz da contrariedade com um sentido de forma e privação, a premissa pode ser verdadeira, mas a conclusão é falsa, uma vez que há nos céus contrariedade no sentido de forma e privação. 

Concluindo, João Filopono atribui a geração e a corrupção aos corpos celestes, tornando falsa a conclusão aristotélica de eternidade do mundo e negando todas as propriedades que Aristóteles atribuiu ao éter. A divisão do mundo em duas regiões distintas e governadas por leis distintas passou a ser interpretada como um conceito falso por Filopono, que passa a considerar o mundo uno, materialmente uniforme com todos os corpos sujeitos à geração e à corrupção.

Bibliografia

ARISTOTLE, On the heavens. Trad. de: W. K. C. GUTHRIE. London: Harvard university press, 1986. (The loeb class library) VI.

__________, Physics. Trad. de R.. Waterfield, Int. & notas de D. Bostock. Oxford: Oxford University Press, 1996.

ÉVORA, F. R. R, “A crítica de Filopono de Alexandria à tese aristotélica de eternidade do mundo”. Analytica, v.7, n.1, 2003. p. 15-47. 

___________,“Natureza e Movimento: um estudo da física e cosmologia aristotélica”. Cadernos de História e Filosofia da Ciência. Campinas, v.15, n.1, p. 127-170, 2005.

___________, “Discussão sobre a Matéria Celeste em Aristóteles”. Cadernos de História e Filosofia da Ciência. Campinas, Série 3, v. 17, n. 2, p. 359-373, jul.-dez. 2007.

__________, “Filopono de Alexandria e a controvérsia acerca da eternidade”. In: Levy, L., Pereira, L.C. & Zingano, M. (eds.). Metafísica, lógica e outras coisas. Rio de Janeiro: Nau/Editora. 2012: 65-96.

PHILOPONUS, J., Against Aristotle on the Eternity of the World. trad. de Christian Wildberg. New York: Cornell University Press, 1987. (De aeternitate mundi contra Aristotelem).

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O Engenheiro Investidor
4 anos atrás

Um dia quero escrever bem assim, melhor que meu TCC rsrs.

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