Uma exposição do caráter teológico e filosófico do opúsculo “De Aeternitate Mundi” – Da eternidade do mundo, de Tomás de Aquino
Há pouco tempo, era comum utilizarmos um ou outro dia das férias para organizar nossos armários, em um propósito de doarmos o que é doável ou eliminarmos o que não presta mais. Era comum separarmos livros de papel que hoje já não são mais aceitos para doação nem pelas bibliotecas. Os formatos digitais vieram para ficar.
Isso porém transferiu o trabalho de organizar armários para organizar HDs. Ou discos virtuais. Nesse processo contemporâneo deparei-me com um texto que escrevi em uma disciplina de filosofia na Unicamp. Foi o meu début em textos filosóficos. Resolvi publicá-lo aqui no blog para ficar disponível na internet, uma vez que existem parcas referências ao assunto em português. Sempre pode existir algum entusiasta no Brasil ou em Portugal procurando por uma discussão sobre o caráter teológico e filosófico do opúsculo De Aeterninate Mundi, de Tomás de Aquino. Sério, eles existem!
Brincadeiras à parte, foi muito interessante e proveitoso a mim escrevê-lo. Aparentemente, pode parecer inútil tal estudo, mas não é. Da mesma forma que pode parecer que todos os Cálculos Diferenciais que aprendi na faculdade de engenharia foram inúteis como aplicação em vida, tais conhecimentos nos levam a exercitar a capacidade de raciocínio, a organização lógica, a construção de um método e a estruturação de uma argumentação bem feita, ferramentas que serão úteis em outros contextos.
Para quem deseja ler ainda outro, veja a Crítica da tese aristotélica da eternidade do mundo, por João Filopono de Alexandria, também publicado nesse blog.
Fiquei apenas aborrecido em função do ambiente aqui do WordPress não permitir facilmente a inserção de notas de rodapé, presentes 45 vezes no texto, a maioria referências às citações. Para quem for, de fato, lê-lo com alguma profundidade, sugiro usar este link, que direciona para a página do documento original no Google Drive. O texto principal, sem as notas, encontra-se a seguir.
De Aeternitate Mundi, de Tomás de Aquino: caráter teológico ou filosófico?
Introdução
A presente dissertação possui como finalidade discorrer quanto ao caráter do opúsculo De Aeternitate Mundi, a Eternidade do Mundo, de Tomás de Aquino, a partir de pensamentos de autores contemporâneos, representados pelos argumentos de Grijs (1990) e Aertsen (1990). O primeiro, defende que o texto é teológico, enquanto o segundo, em um artigo escrito como contra-argumento a Grijs, faz uma defesa do caráter filosófico do opúsculo. A partir da análise de ambos pensamentos, teremos o propósito de, ao final desse texto, obter a conclusão de que o opúsculo possui caráter filosófico.
A diferenciação da filosofia e da teologia evidencia-se na resposta à pergunta: “Quais as questões fundamentais, ou princípios, que motivam a reflexão?” Em uma discussão filosófica, os argumentos residem em um domínio público, conhecidos por si mesmos (embora não sejam imunes à análise racional) ao invés de conhecidos por outros.
O discurso teológico, por sua vez, baseia-se nos princípios onde sua verdade está baseada na fé, isto é, as verdades são transmitidas pela autoridade e reveladas por Deus. Verdades secundárias podem estar implícitas dentro das verdades reveladas constituindo um princípio comum de pensamento e ser, caracterizado formalmente pelo fato de que seus argumentos e análises são tomados a partir da revelação bíblica da verdade.
Tais definições podem ser usadas para decidir se um texto é filosófico ou teológico. Se ele baseia-se apenas em verdades e se oferece para conduzir a novas verdades e apenas com base em tais verdades, então o discurso é filosófico. Seu domínio existe na razão e deve admitir somente o que é acessível à luz da racionalidade e demonstrável apenas por seus recursos. Por outro lado, o texto cuja força de convicção, não formal, mas substancial, depende da aceitação da verdade como uma revelação provinda de uma fonte de autoridade bíblica como necessária a um argumento é um discurso teológico.
O próprio Tomás expõe a questão dos diferentes discursos e procura diferenciar o discurso teológico aplicado à filosofia daquele que estuda a doutrina sagrada . Diz ele:
Para diversas formas de conhecimento, existem diversas ciências. (…) nada impede que diferentes conhecimentos participam do campo das matérias filosóficas sendo conhecidas apenas pela razão natural, e ao mesmo tempo, dentro do campo de outra ciência cujo modo de conhecimento se faz pela luz da revelação divina. De onde se deduz que a teologia que estuda a doutrina sagrada, por seu gênero é distinta da teologia que figura como parte da filosofia.
Aquino pergunta-se qual a necessidade de um discurso além do discurso filosófico uma vez que tudo que é objeto da investigação pode ser qualificado como sendo um tipo ou de outro, ou seja, que as disciplinas filosóficas parecem cobrir todo o tipo de ser. Nada impede uma ciência tratar à luz da revelação divina o que a filosofia trata como à luz da razão humana. Para Tomás, o discurso filosófico começa com o conhecimento do mundo e sugere que há de fato elementos que Deus revelou e que são em termos formais, filosóficos, logo sujeitos à discussão filosófica e investigados sem a condição de fé, podendo não ser necessária para reconhecê-los como verdadeiros.
Retornando à obra De Aeternitate Mundi de Tomás de Aquino, a mesma é redigida de forma a demonstrar que não existe conflito na possibilidade de o mundo ter sido criado e se poderia ter existido sempre, ou seja, não há contradição alguma entre ambas afirmações. O desenvolvimento dessa conclusão baseia-se em diferentes concepções de criação como temporalidade e de eternidade como existência.
Essencialmente, a eternidade é totalmente simultânea, diferentemente do tempo da criação que é intimamente ligado com a ideia de sucessão, tornando tais conceitos completamente distintos. O tempo, como medida de movimento, engloba as substâncias compostas de matéria e forma.
De forma oposta, a eternidade é a medida da absoluta permanência do ser. A razão da eternidade consiste na captura desse conceito de uniformidade, que está além totalmente do movimento, e faz com que ela seja como o tempo, uma medida. Mas se o tempo é a medida do movimento, a eternidade é a medida do que não possui movimento.
Portanto, o tempo e a eternidade diferem-se como tipos de duração do ser em si. Em outras palavras, Tomás afirma que “só é medido pelo tempo o que tem princípio e fim temporais”, ou seja, precisamos ultrapassar as noções de tempo, espaço e movimento.
O opúsculo está estruturado em três principais divisões. Na primeira, introduz-se o problema e o caráter do texto. Na segunda, Aquino demonstra os impeditivos de se sustentar que não há repugnância entre os conceitos de criação e eternidade e na última divisão, foca nas objeções que se pode lançar em seus argumentos em relação à co-eternidade entre Deus e a criação.
O caráter teológico de Aquino em De Aeternitate Mundi, por Grijs
Grijs, avaliando minuciosamente o opúsculo de Aquino e analisando autores pregressos, defende o caráter teológico de De Aeternitate Mundi , primeiro ratificando a opinião de James Weisheipl, o qual argue que a obra não é nem uma refutação dos trabalhos de Aristóteles, nem uma defesa da argumentação aristotélica contra seus oponentes, situações consideradas como embates filosóficos.
Além disso, segundo Grijs, Weisheipl sustenta que o principal assunto de De Aeternitate Mundi implica questões sobre o poder de Deus e sobre os limites da razão humana: a onipotência infinita de Deus seria a causa de um efeito infinito – a duração do mundo, e assim, a obra seria eminentemente teológica. Grijs desenvolve esse segundo ponto de Weisheipl através de mais três argumentos.
O primeiro trata que o texto está imerso na fé católica, desde o seu início: “Admitido, segundo a fé católica, que a duração do mundo…”, entendendo a admissão de fé como uma norma cristã de vida. Discorre ainda sobre alguns termos utilizados por Aquino que denotam um caráter religioso, como o termo “herético” consoante à ideia do abandono de algum aspecto de fé e/ou a recusa de seguir algum preceito religioso.
A escolha da linguagem utilizada por Aquino também demonstra, para Grijs, uma escolha teológica, especialmente para explicar o conceito de criação, uma vez que o autor possuía conhecimentos fora da fé cristã para referenciá-lo, mas utilizou-se dos ensinamentos bíblicos para atribuir a causa primeira à Deus. Grijs enumera ainda que o opúsculo possui 42 menções da palavra latina “dicere” (dizer), como no exemplo a seguir:
Quanto ao segundo modo, diz-se que por causa da contradição entre conceitos algo não pode ser feito (…), ainda que Deus o possa fazer, como dizem. Outros porém, dizem que nem Deus o poderia fazer, pois isso é nada (…)
Tais termos, assim como “se supõe”, “se noticia”, usados ao invés do verbo “conhecer” designam saber não demonstrativo. Especial atenção é dada ao termo “philosophi”, usado na época para designar autores pagãos que se afastaram dos ensinos teológicos para o uso puro da razão em seus argumentos. Segundo Grijs, Aquino não se considerava um filósofo e assim, fortalecia a tese de que seu trabalho era teológico.
Em outro argumento, Grijs afirma que Aquino não conduziu um caminho natural de entendimento do mundo em sua própria natureza, mas sim divina, e seu opúsculo De Aeternitate Mundi. é “uma longa e especial busca por Deus”, uma busca da essência divina. Grijs relaciona todo um “processo de pensamento de Aquino em obras como a Suma Teológica para a construção desse argumento, principalmente através de um processo que não podemos conhecer o que Deus é, mas sim o que ele não é, removendo dele tudo que não convém para o seu entendimento”. O entendimento de “mundi”, para o autor, é utilizado dentro de um domínio do conhecimento humano de Deus e seu opúsculo é uma síntese de todo o conhecimento que Aquino adquiriu em obras anteriores, de que a fé católica ensina que o Deus triúno é o criador.
Outro aspecto considerado por Grijs são as analogias que Aquino faz utilizando uma linguagem de causa e efeito, como relacionar o conceito da física de Aristóteles para causa essendi com a natura Trinitatis, utilizando termos análogos para se pensar no divino de uma maneira peculiar e posicionando a natura Trinitatis como o sujeito da proposição.
Essa ideia de predicação analógica realizada por Aquino, ou seja, reconhecer que as palavras usadas para falar de Deus não possuem o mesmo significado para falar de coisas criadas, mas são representações de analogias, é um dos apontamentos citados por Gritz para provar o perfil teológico no opúsculo. O filósofo afirma que conhecemos Deus através de Sua criação, que se assemelham a Ele do mesmo modo que os efeitos se assemelham às causas.
Quando diz, por exemplo, que Deus é bom, tal afirmação é feita de forma imperfeita e tais palavras são utilizadas em função da nossa própria percepção da realidade criada. Assim, a bondade existente em nós é causada por Deus e apesar de tal fato ser tomado como verdade, é uma representação insuficiente de como é sua real representação no agente causador. Tal forma de linguagem deve ser entendida como uma analogia da perfeição e onipotência de Deus:
Como é próprio da onipotência de Deus exceder todo o entendimento e toda a força, expressamente nega a onipotência de Deus aquele que diz poder pensar nas criaturas algo que não possa ser feito por Deus, o que não é o caso dos pecados, que, enquanto tais, são nada.
Nessa forma de expressão, era necessário usar de analogias para falar do Deus infinito, uma vez que sua natureza divina podia ser revelada ou não revelada para as mentes reais e finitas. O próprio Aquino afirma a utilidade do uso de analogias nas escrituras sagradas:
É próprio que o humano chegue ao inteligível pelo sensível, uma vez que nosso conhecimento começa pelos sentidos. Foi assim conveniente que o (conhecimento) espiritual da Sagrada Escritura fosse-nos transmitido através do material.
Esse entendimento analógico se constrói atribuindo em primeiro lugar a inacessibilidade à Deus. A incapacidade de falar sobre o divino, entretanto, não impede o seu total conhecimento, uma vez que é possível alguma compreensão através das relações de Deus e da criatura e das criaturas com elas mesmas. A sustentação dessa proporção em um campo de investigação conhecido pode auxiliar a compreensão do objeto desconhecido por analogia, pois no primeiro é possível perceber, abstrair e inteligir, diferentemente do conhecimento divino. As palavras que usamos designam pensamentos que por sua vez, designam objetos conhecidos. Tais palavras são utilizadas para descrever um entendimento limitado de Deus.
É possível assim, sustentar que aquilo que pode ser dito para a criatura pode ser dito para Deus por uma via negativa. A criatura é tudo o que Deus não é e Deus é tudo o que a criatura não é. Então, ao dizer da criatura, por analogia, digo negativamente de Deus. Essa é a estruturação analógica do texto comentada por Grijs.
Caso Grijs tenha razão, essa estrutura analógica, ou ainda a construção de um discurso indireto ao invés de um discurso direto por Tomás, atribui uma característica eminentemente teológica do texto e infere que seu objetivo não é sobre a eternidade do mundo, mas sim se Deus tem o poder de fazer algo:
Se, porém, se disser que isto é impossível, isto se diz ou porque Deus não pôde fazer algo que tenha existido sempre, ou porque isso não pôde ser feito ainda que Deus o pudesse fazer. Porém, quanto à primeira parte, todos concordam que Deus pôde fazer algo que tenha existido sempre considerando sua potência infinita (…)
Dessa forma, segundo Grijs, Aquino altera o sujeito da proposição e todas as conclusões adicionais que são predicadas desse sujeito e a principal razão para De Aertenitate ser escrita é uma especial busca pelo o que Deus não é, negando constantemente que, mesmo que exista uma importância em provar que o mundo seja eterno, isso não faria dele um Deus.
O caráter filosófico de Aquino em De Aeternitate Mundi, por Aertsen
Aertsen, diferentemente de Grijs, entende que a suposição inicial de que o texto está imerso na fé católica desde seu início é de fato um pré-requisito necessário para tal conclusão, mas não suficiente. Baseado em trabalhos como a autobiografia de Gilson, Aertsen conclui que na Idade Média, o conceito de teologia medieval não excluía a noção de filosofia, e a diversidade de opiniões dos filósofos da época implicavam diretamente nas opiniões dos teólogos, o que ajuda a entender a suposição inicial feita por Aquino em De Aeternitate Mundi.
A suposição de fé não significa a definição de um caráter teológico do texto ou de sua discussão, mas sim indica que a questão ocorre fora do domínio da fé. O texto inicia a partir de uma suposição, que pode ser de fé, para se instaurar uma dúvida, a qual é investigada no campo demonstrativo ou filosófico. Aertsen reforça seu argumento mostrando que Aquino distingue abertamente, em outra passagem, que a dúvida em si não pertence ao domínio da fé, ou seja, ele distingue a verdade de um caráter herético.
Em seu próximo argumento, Aertsen pede consideração para o entendimento do termo dúvida (“dubitatio”) no opúsculo de Aquino. Para tal digressão, ele explica inicialmente as principais diretrizes que constroem o argumento principal do autor medieval. A dúvida inicial, se o mundo deveria ter existido sempre, não possui relação sobre sua origem causada por Deus, mas sim se o mundo sempre existiu ou foi criado.
Essa dúvida aponta na forma de três impedimentos em se dizer se o mundo é eterno ou criado: o poder de Deus, a ausência de alguma potência eternamente passiva e a contradição entre os termos criação e eternidade. Os dois primeiros impedimentos, ausentes de obstáculos, são descartados rapidamente como pontos centrais do texto. Porém, o terceiro impedimento sugere uma dificuldade que não pode ser removida facilmente, e é esse aspecto, eminentemente filosófico, focado por Aquino:
Logo, nisso consiste toda a questão: se algo a ser criado por Deus segundo a totalidade da substância e não ter início de duração são contraditórios (repugnantes) entre si ou não.
Prosseguindo na estruturação do opúsculo, Tomás demonstra que tal repugnância não existe e quatro argumentos são usados para sustentar essa tese. Segundo o filósofo, um agente não precisa anteceder seu efeito em duração, isso é, causa e efeito podem ser contíguas. A causa transita de um ente para outro ente e essa causa tem de ser contígua com a duração do efeito: existe o efeito, existe a causa; cessa o efeito, cessa a causa. Assim, a criação é uma forma de causalidade, e havendo um criador, há criatura. Como o criador é eterno, a criatura também deve ser eterna.
Posteriormente, é afirmado que não há duração envolvida na criação ex-nihilo, o que é sustentado por Aquino de dois modos possíveis: através da fé, onde trata da duração do mundo como seu tempo inicial, ou através da razão, onde o princípio de origem não está envolvido com o tema da duração, pois tal tema se resolve não pela fé, mas pela causalidade: a causa antecede o tempo primeiro. Voltarei a esse assunto adiante com um comentário adicional sobre outro texto de Aquino.
Na sequência, Aquino usa a obra de Agostinho para mostrar que nem mesmo o “pai da Igreja” e os filósofos perceberam alguma contradição entre os conceitos em se dizer que algo foi feito por Deus e que nunca existiu, o que possibilitaria refutar a condição eterna do mundo. Poder-se-ia pensar que Aquino estaria recorrendo à uma autoridade e fugindo da discussão filosófica.
Porém, no campo da filosofia, também existe o recurso da autoridade, principalmente se a referência é a um filósofo, assim entendido por Aquino, e não às Sagradas Escrituras. Tal autoridade não infere que uma opinião manifestada se transforma em regra, mas sim dentro do entendimento de um conjunto de textos atribuídos ao campo filosófico. Portanto, autoridade pode exatamente designar a busca pela delimitação do campo linguístico no qual a discussão deve ser construída.
Finalizando a estruturação, Aquino, em Aeternitate Mundi considera algumas objeções realizadas por João Damasceno contra a possibilidade de um mundo eterno onde a eternidade iguala criatura e criador, ou seja, dá à criatura a mesma infinitude do criador, onde Tomás sustenta que não há essa equiparação.
Segundo Aertsen, essa sinopse de seu opúsculo demonstra que Aquino não focou seu texto em Deus, mas sim na realidade criada, e seu ponto central é a contradição entre “ser criado” e “ser eterno”. Uma questão eminentemente filosófica, não teológica.
Aertsen utiliza outro texto de Aquino – De Potentia, para reforçar seus argumentos, onde a questão da diferença essencial entre o mundo e Deus já havia sido estabelecida pelo autor anteriormente. Para isso, o filósofo defende duas interpretações sobre o significado da possibilidade. A primeira é que é possível o que é em potência, e como há dois tipos de potência – ativa e passiva, também há dois tipos de possíveis.
Os possíveis ativos dependeriam da existência de algo que possa lhes conferir existência enquanto os possíveis passivos exigiriam uma capacidade intrínseca presente nas coisas já existentes. A segunda interpretação diz que o possível não está relacionado à noção de potência e pode ser expresso ou metaforicamente, ou em sentido absoluto, quando os termos de uma proposição não se encontram em uma contradição. Tal sentido de possibilidade absoluta, a qual evita a referência à potência é enfatizado por Tomás, mostrando que todas as noções não contraditórias se apresentam possíveis:
Assim, é dito ser impossível para uma coisa ser e não ser ao mesmo tempo, não em referência a um agente ou paciente, mas porque é impossível nele mesmo, como se os termos fossem contraditórios entre si. (…) Se, então, nós consideramos a afirmação de que algo substancialmente distinto de Deus sempre existiu, não pode ser descrito como impossível por si só, como se ele continha uma contradição nos termos: porque ser de outro não é incompatível com ser desde a eternidade.
Evitando a referência da noção de potência, Tomás desvia-se da alusão às leis mundanas e tal princípio lógico (não ser contraditório) constitui o fundamento para constatar a possibilidade. Associando tal possibilidade com a essência divina, torna os possíveis não como “obra” divina, mas sim como consubstanciais a Deus e portanto, não contraditórios. Assim, em De Potentia, é dito que “ser feito a partir de algo” não é repugnante à afirmação de “ter existido sempre”, para mostrar que mesmo o que difere em essência de Deus poderia ter existido sempre, exemplificando a questão a partir de Deus e de Seu filho. Apenas em casos onde algo procede de outro através do movimento (o que não é dito para Deus, ato puro) tais afirmações poderiam ser contraditórias.
Assim, segundo Aertsen, Aquino intenciona mostrar em De Aeternitate Mundi, que não existe tal incompatibilidade em afirmar-se ser criado e ser eterno de algo e que tais afirmações não estão contra os propósitos da fé cristã, ou seja, que não existe tal impossibilidade lógica, visto que o termo “possível” provém ou de uma potência ativa ou de uma forma absoluta, como pode ser vista na resposta de Aquino à objeção 8 (“É essencial para o eterno não possuir um princípio, enquanto é essencial à criatura o possuir. Portanto criaturas não podem ser eternas”) em De Potentia 3,14:
Este argumento não prova nada mais do que que, ser feito e existir sempre não são incompatíveis se considerados neles mesmos: de forma que se considera que ambos são possíveis absolutamente.
A discussão entre o caráter teológico e filosófico em Aquino é extensa, prossegue Aertsen, uma vez que essa dualidade é própria do autor medieval, especificamente em seu texto “Comentário sobre as sentenças”, com discussões de como a fé e os filósofos abordam a criação, enfatizando que artigos que competem à fé não podem ser demonstrados. Aquino considera que os filósofos entendem a criação de uma forma diferente do que prega a fé cristã, para que argumentos possam ser demonstrados. Entender o que esse entendimento filosófico da criação envolve é primordial para sua compreensão.
Nesse mesmo texto de Aquino, Aertsen investiga o fato do uso, por Aquino, do termo ex-nihilo para tratar da criação eterna, que é considerado de forma semântica, isso é, através de uma análise minuciosa de seu significado. Influenciado por Avicenna, o filósofo afirma que o começo de tudo pertence à noção de criação como sendo um princípio de origem, mas não de duração, ou seja, “a possibilidade de criação eterna ocorre em um aprofundamento metafísico: a essência da criação não repousa exclusivamente sobre a duração”.
Em In Sent, 1,1,2, Tomás aplica essa análise e adiciona três características para a noção de criação. A primeira é diferenciar tal conceito do conceito de geração, ou seja, não há matéria pré-existente e sua causalidade estende-se para tudo que já existe em algo, colocando seu debate no campo metafísico. Assim, o filósofo coloca o termo como a origem da existência em si. Em seguida, afirma que, em um senso natural (não necessariamente temporal), o não existente precede o existente, causando uma dependência da existência. Isso reforça sua diferenciação, na primeira característica, em relação ao termo “geração”, pois essa pode ser independente e absoluta, como, por exemplo, a geração do filho de Deus.
Segundo Tomás, se ambas características são suficientes para definir a essência da “criação”, essa pode ser demonstrada de uma forma metafísica. Porém isso não será verdade se aceitarmos uma terceira característica para tal definição, ou seja, que a coisa criada possui uma não existência antes da existência, mesmo em duração. Nesse sentido, a criação seria suposta pela fé, implicando ainda uma dependência permanente do ser na coisa criada.
A discussão desses conceitos a respeito da criação, de acordo com Aertsen, planta a dubitatio no escrito de Tomás de Aquino, tornando o “início”, no conceito cristão de criação, uma reflexão metafisica “de origem”. A discussão da possibilidade da criação eterna torna possível um entendimento apropriado de tal conceito e dá uma extensa contribuição para a natureza filosófica de seu opúsculo De Aeternitate Mundi.
Considerações finais
O primeiro ponto discutido por Grijs, não comentado por Aertsen, é de que a obra de Aquino não é uma defesa nem uma refutação da obra de Aristóteles. Ora, esse não é o objetivo do opúsculo, e passagens que citam o filósofo da antiguidade mostram que, na verdade, o tratamento de Aquino aos seus ensinamentos confere uma posição de autoridade ao autor, o que torna tal argumento insuficiente para conferir qualquer indício de característica teológica ao texto:
Porém, todos os que trataram os argumentos aristotélicos, pelos quais se provam que as coisas existiram sempre a partir de Deus, devido a que o mesmo faz sempre o mesmo, dizem que isso se seguiria se não fosse um agente voluntário.
Aertsen inicia a contra-argumentação a Grijs quando este assume que o texto está imerso na fé católica desde sua frase inicial, onde Aquino admite uma questão de fé para que a duração do mundo tenha um início. Aertsen admite a suposição de fé de Aquino, mas entende que o foco do autor medieval está na dúvida que provém após a suposição inicial:
“admitido, segundo a fé católica, que a duração do mundo teve um início, levantou-se a dúvida se poderia ter existido sempre.
Assim, a admissão da fé não seria o ponto central do opúsculo, mas sim a dúvida que expressa a possibilidade de o mundo ter existido sempre. A fé não compromete assim, o texto com um caráter teológico, mas permite que tal dúvida seja esclarecida de forma que ela não comprometa a verdade da fé. Na sequência, Aquino confirma tal acepção:
Para que a verdade dessa dúvida seja esclarecida, primeiro deve-se distinguir em que concordamos com os adversários e em que deles discordamos.
Quando buscamos as definições dadas do caráter teológico e filosófico de um texto na introdução desse trabalho, vemos que na discussão filosófica, os argumentos, e não uma verdade estabelecida, são primordiais para seu desenvolvimento. Pelas palavras de Aquino no início de De Aeternitate Mundi, seu propósito é esclarecer a partir de uma dúvida imersa em um debate, ou seja, não existe uma verdade revelada, e essa dúvida será investigada a partir de uma abordagem filosófica.
A admissão segundo a fides catholica não é, assim, o ponto central do opúsculo, embora a verdade procurada não prejudique uma base de fé – que o mundo teve um início de duração. Enfatiza-se, segundo Aertsen, que esse opúsculo foi redigido após a Suma de Teologia, onde Aquino já havia tratado dessa verdade de fé anteriormente, e não existira motivos para que tal assunto seja parte central de uma nova discussão, mas sim um ponto de partida para a indagação de uma nova dúvida: se há contradição entre “ser criado” e “ter sempre existido”.
Grijs afirma que a utilização de alguns termos de caráter religioso como “herético” por Aquino, conduz a uma abordagem religiosa. Apesar de o termo denotar um aspecto de (falta de) fé, tal argumento não se sustenta por dois caminhos: primeiro, na Idade Média, a filosofia e a teologia, segundo Aertsen, possuíam uma tênue linha divisória e o uso de termos de um campo em outro era muito comum. Segundo, que o termo foi utilizado por Aquino em passagens como a seguinte: “Seja qual for a verdade disto, não será herético dizer que pode ser feito por Deus algo criado por ele tenha existido sempre”. O termo “herético” poderia ser simplesmente substituído por “falso”, revelando que claramente existe uma noção argumentativa, de distinção, e portanto, de caráter filosófico.
O argumento de Grijs, de que Aquino não se considerava um filósofo e assim, direcionaria seu texto para o campo teológico, não se sustenta se considerarmos o que o autor medieval escreveu na Suma Teológica na introdução desse trabalho: “a teologia que estuda a doutrina sagrada, por seu gênero é distinta da teologia que figura como parte da filosofia.”. Aquino demonstra justamente a diferença entre duas acepções da teologia, o que cai por terra esse argumento de Grijs: mesmo que ele não se considerasse um filósofo, poderia utilizar a acepção teológica-filosófica para a confecção de seus textos.
Grijs prossegue utilizando um trecho do De Aeternitate Mundi para argumentar que Aquino disserta sobre a onipotência divina, mas pela finalização do mesmo trecho “Resta-nos, portanto, verificar se é possível algo ser feito que tenha existido sempre”, percebe-se que as palavras iniciais são usadas como uma premissa que não seria investigada, mas sim se é possível que o mundo fosse eterno, objeto central da discussão.
Essa dúvida é enfatizada por Aertsen, que afirmava que a mesma não possui relação sobre a origem causada por Deus, mas se simultaneamente, existe possibilidade entre a criação e a eternidade do mundo, que é tratado principalmente pela demonstração de que não existe repugnância entre tais conceitos, e é nisso o objetivo principal da investigação filosófica do opúsculo:
Logo, nisso consiste toda a questão: se algo a ser criado por Deus segundo a totalidade da substância e não ter início de duração são contraditórios (repugnantes) entre si ou não.
De Aeternitate Mundi procura assim, aliar uma discussão claramente filosófica sem questionar a verdade revelada, mantendo os preceitos religiosos intactos mesmo com a possibilidade de o mundo ser eterno. Nesse mesmo contexto, entende-se que a aplicação das analogias sugeridas por Grijs não retiram o caráter filosófico do texto, pois a dualidade exposta por Tomás não é condicionante para que se afirme que Aquino foca a sua atenção em Deus ao invés da discussão se existe a contradição entre a eternidade e a realidade criada. A relação dos efeitos perante as causas teológicas, a predicação analógica realizada por Aquino, assim, não impede que se debata o ponto central do opúsculo, debate eminentemente filosófico.
A discussão do texto De Potentia mostra que Aquino relaciona o possível à manifestação da essência – e potência, divina, Segundo Storck (2003), essa equivalência marca decisivamente os argumentos sobre a criação e a eternidade do mundo no opúsculo em estudo, uma vez que rompe com o pensamento aristotélico de que a possibilidade da existência de algo em termos somente de potencialidades naturais.
Para Aquino, a análise da ligação entre sujeito e predicado de uma proposição é suficiente para concluir se é verdadeira uma possibilidade. Se ambos (sujeito e predicado) não são mutuamente excludentes, não há contradição e a proposição é possível, permitindo a defesa da não necessidade de um fundamento material para a origem de algo, ou seja, abrindo o amparo ao critério da criação ex-nihilo.
Tais discussões de Aquino, quando aplicadas no opúsculo, reforçam ainda mais sua natureza filosófica, na medida que ele amortece na discussão e em seus argumentos o ponto de vista da fé pura e simplesmente. Aquino deixou bem claro que Deus não pode fazer coisas contraditórias (“No entanto é manifesto que não se pode fazer com que isto seja feito, pois essa posição, uma vez estabelecida, destrói a si mesma”) e afirmou posteriormente que a integridade da fé cristã não foi abalada mesmo quando grandes homens afirmaram o contrário:
…se Deus é onipotente, que faça com que aquelas coisas que são verdadeiras, por serem verdadeiras, sejam falsas’. E no entanto, alguns homens notáveis piedosamente afirmaram que Deus pode fazer com que o passado não tenha sido passado sem que (isto) tenha sido considerado herético.
Tais argumentos demonstram que a fé não é um argumento para a tese da possibilidade do mundo ser eterno a partir da contradição entre ‘ser criado’ e ‘existir eternamente’, e tal discussão, racional, não é herética. Caso Tomás estivesse fazendo um texto de caráter religioso, tais fundamentações e o assentimento de que pensamentos de fé não podem ser demonstrados filosoficamente, seriam desnecessários.
Ainda dentro desse contexto lógico que prevalece em um discurso filosófico, uma discussão com base na razão deve consentir apenas o que é acessível à luz da racionalidade e demonstrável somente através de seus próprios e meios e Aquino o faz continuamente na investigação semântica e lógica dos termos. A semântica, ou o estudo dos significados das palavras e expressões linguísticas, na medida que estas caracterizam ou remetem uma referência, contradiz-se com a exploração do discurso teológico, determinado por argumentos e reflexão cuja verdade de significação é tomada a partir de uma revelação.
Assim, os termos utilizados por Aquino e investigados de forma semântica e lógica, como os utilizados em seus argumentos da inexistência de duração na criação ex-nihilo, sua discussão metafísica da “origem”, criam condições para a compreensão de uma concepção do termo “criação” e demonstram a natureza filosófica do opúsculo. O papel do filósofo no opúsculo é uma espécie de eliminador de problemas, na medida em que, ao esclarecer o domínio da linguagem, mostra como tais problemas, como falsos problemas metafísicos, são característicos de uma certa crença, época e cultura, e não são essencialmente filosóficos, tornando assim, o opúsculo De Aeternitate Mundi um texto essencialmente filosófico.
Referências bibliográficas
AERTSEN, J. A. The eternity of the world: the believing and the philosophical Thomas. Some comments. In Wissink J.B.M. (Org.). The Eternity of the World. Leiden: Ed. E.J.Brill, 1990. p. 9-19.
AQUINO, Tomás de. De aeternitate mundi. Trad. J. M. Costa Macedo. Mediaevalia: Textos e Estudos. v.9. Porto: Fundação Eng. Antônio de Almeida, 1996.
AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. Volume I. São Paulo:Loyola, 2004.
DE GRIJS, F. J A. The theological character of Aquinas’ De aeternitate mundi. In Wissink J.B.M. (Org.). The Eternity of the World. Leiden: E.J.Brill, 1990. p. 1-8.
GILSON E. Le philosophe et la Théologie. Paris, p.106, 1960, apud Aertsen (1990).
STORCK, A. Eternidade, Possibilidade e Emanação. UFRGS: Analytica, V7, n1, p. 130-143, 2003.
WEISHEIPL, J.A. (1983). The Date and Context of Aquinas’ De Aertenitate Mundi, in Graceful Reason; Toronto: L.A. Gerson, 1983. p.258-270, apud De Grijs, 1990.
STANFORD Encyclopedia of Philosophy. Disponível em http://plato.stanford.edu/entries/aquinas/, acessado em 22.10.2014.
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